Estudando o Espiritismo

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sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

O REINO DE DEUS (TOLSTOI ENCONTRA ZAQUEU)

O REINO DE DEUS

 (TOLSTOI ENCONTRA ZAQUEU)

Nota do compilador: Uma das passagens bem conhecidas da vida de Jesus é,  sem dúvida, seu encontro com Zaqueu. Este, de estatura baixa, rico e criticado pelo povo porque desempenhava a função de coletor de impostos, subiu a uma árvore para ver Jesus. O Mestre, vendo-o, chamou-o e disse: Zaqueu, desce depressa, porque importa que eu fique hoje em tua casa. (Lucas, 19:1 a 10.) A história seguinte, descrita pelo espírito de Leon Tolstoi no livro "Ressurreição e Vida!" de sua autoria e psicografado pela médium Yvonne A. Pereira, coloca-nos numa posição privilegiada diante de tanta beleza e ensinamentos que ela nos traz.

"Tendo-lhe feito os fariseus esta pergunta: - Quando virá o reino de Deus? - Respondeu-lhes Jesus: - O reino de Deus não virá com mostras exteriores. Nem dirão: - Ei-lo aqui; ou: - Ei-lo acolá. Porque eis que o reino de Deus esta dentro de vós."  (LUCAS, 17:20 e 21.)

"E tendo entrado em Jericó, atravessava Jesus a cidade. E vivia nela um homem chamado Zaqueu, e era ele um dos principais entre os publicanos, e pessoa rica. E procurava ver Jesus, para saber quem era, mas não o podia conseguir, por causa da muita gente, porque era pequeno de estatura. E correndo adiante subiu a um sicômoro para o ver, porque por ali havia ele de passar. E quando Jesus chegou àquele lugar, levantando os olhos, ali o viu, e lhe disse: - Zaqueu, desce depressa, porque importa que eu fique hoje em tua casa. E desceu ele a toda pressa, a recebeu-o, satisfeito. Vendo isso, todos murmuravam, dizendo que tinha ido hospedar-se em casa de um homem pecador. Entretanto, Zaqueu, posto na presença do Senhor, disse-lhe: - Senhor, eu estou para dar aos pobres metade dos meus bens,e naquilo em que eu tiver defraudado alguém, pagar-lhe-ei quadruplicado. Ao que lhe disse Jesus: - Hoje entrou a salvação nesta casa, porque este também é filho de Abraão. Porque o filho do homem veio buscar e salvar o que estava perdido." (LUCAS, 19:1 a 10.)

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     Eu trouxera para a Vida do Além o desejo sincero de aprender a amar e servir o meu próximo. Creio mesmo que nos últimos tempos de minha vida intuições protetoras, bondosamente alimentadas por amigos celestes, que se compadeciam do meu pesar por não me haver sido possível ser tão fraterno para com os outros, como o desejara, falavam-me de rumos novos que deveria tomar, bem diversos daqueles que a sociedade viciosa do meu tempo me apontara.

     Carreguei para o túmulo esse pesar. E esse pesar se acentuou aquém do túmulo e se transformou em aflição. Em vergonha depois. E em remorso. Compreendi por isso que, além dos umbrais da morte, o mérito que se nos permite é aquele que o Amor confere. E eu, que desejara amar, sem realmente ter amado; que fora rancoroso quando devera ser brando de coração; que usara da impaciência e do desdém - quantas vezes?! - onde se recomendariam a ternura e o interesse complacente, entendi que nada sabia, que nada fizera de bom e que urgia aprender novamente tudo o que uma alma necessita para a reabilitação de si mesma ante o próprio conceito.

     Um dia (direi um dia para que os homens me entendam, porque nestas plagas espirituais não se poderá expressar assim, visto que se desconhecem os dias e as noites, para somente se integrar a mente no eterno momento), um dia roguei Àquele que É a piedade de me proporcionar ensejos de um aprendizado de legítimo Amor ao próximo, mas um aprendizado que saciasse a minha alma até às suas remotas fibras, fazendo desaparecer o complexo da ideia de desamor em que me considerava ter vivido.

     Pus-me a "passear" pelo espaço ilimitado, pensativo e compungido, e por vezes recordando meus antigos passatempos pela floresta de Yasnaya Polyana1, ao passo que confabulava com a própria consciência, estabelecendo resoluções definidas e programas urgentes.

     Havia pouco tempo que abandonara aos vermes aquilo que fora a minha personalidade social humana, e a mente, afeita desde o berço às paisagens russas, figurava para si própria os quadros habituais de minha terra natal: estepes geladas a se confundirem com o horizonte, onde o vento soprava levantando a neve, para reuni-la em montículos que se multiplicavam a perder de vista; as aldeias com suas "isbas", movimentadas pelo trabalho dos moradores sempre preocupados com suas lides; o gado rumorejando à hora do repouso; as camponesas palrando ou cantarolando ao recolherem as roupas que secavam ao vento desde manhã; os "trenós" e as "troikas" regressando com seus nédios proprietários, bem aquecidos e ainda mais tranquilos sob suas peliças, depois de vencerem cinco ou oito "verstás", satisfeitos com os resultados de suas compras e vendas...

     Mas de súbito tudo mudou.

     Vi-me perdido em campo azul-pálido, lucilante de uma aurora cujo resplendor matizava de doces coloridos a região imensa. E acolá, sentado, meditativo, como a contemplar algo que eu era impotente para também distinguir, entrevi um vulto atraente, cujo aspecto me surpreendeu. Dir-se-ia encontrar-me em presença de um daqueles discípulos do Nazareno, daqueles que, no anonimato, o seguiam em suas idas e vindas pelos contrafortes da Judéia e as planícies de trigo da Galileia.

     Reparando de mais perto, e mais atentamente, compreendi que o vulto discursava para a pequena assembleia de ouvintes sentados pelo chão, à sua volta, como de uso no Oriente, e como se concedesse uma entrevista ou uma aula. Em derredor, estendia-se um panorama oriental recordando as descrições bíblicas. Veio-me a impressão de que o Tempo recuara dois milênios, transportando-me, sem que eu o percebesse, à Galileia da época da peregrinação do Senhor por suas paragens.

     A luz da aurora, inalterável, incidia suavemente sobre o grupo e a pradaria em torno, com irradiações de madrepérola esbatendo claros e sombras tão singulares que eu desafio, a todos os artistas que têm passado pela Terra, a reproduzirem em suas telas um só daqueles celestes reflexos que então tive a ventura de contemplar.

     Aproximei-me de mansinho do grupo entrevisto, discreto, algo curioso. E me considerei discípulo daquele provável mestre, como os outros que o rodeavam. E eis o que ouvi e presenciei:

     - Retornaremos a qualquer momento para nova experimentação terrena, mestre Zaqueu... Fala-nos de ti mesmo, dos tempos apostólicos, das pregações do Nazareno expondo a sua Boa Nova, que provavelmente ouviste... Seria de muito bom proveito que levássemos, detidos nas comportas da consciência, algo estimulante, deslumbrante, desse tempo... para que, uma vez nos sentindo novamente homens, pouco a pouco se fossem destilando, pelos escapamentos da intuição, essas lições salvadoras que sabes contar, à guisa de reminiscências levadas deste plano espiritual em que nos encontramos... - rogaram sorrindo os discípulos, todos atraentes personagens, muito agradáveis de ver.

     Sobressaltei-me.

     - Zaqueu?... - pensei. - Mas seria aquele que subiu ao sicômoro, quando o Senhor entrava em Jericó, para vê-lo passar?... Seria aquele em cuja casa Jesus se hospedara? que oferecera ao Mestre um festim, enquanto o reino de Deus era mais uma vez ensinado aos de boa vontade, entre os convivas?... Seria possível, mesmo, que eu me encontrasse em presença de um Espírito que fora "publicano" ao tempo do Senhor, na Judeia; que viesse a conhecer alguém que, por sua vez, houvera conhecido a Jesus - Cristo?...

     Excitado, aproximei-me ainda mais. Pus-me à sua frente, sentado como os outros, a olhar para ele.

     Ao que observava, aquela sociedade retratava uma democracia modelar, superior em moral e fraternidade mesmo à que eu sonhara outrora para a Rússia e o mundo, nas horas de desesperança, quando observava o Mal perseguindo o Bem, a Força dominando o Direito, a Treva sobrepondo-se à Luz. Eu chegava ali sem credenciais, sem apresentações. Sentava-me entre todos, confiante, como se compartilhasse benefícios da casa paterna entre irmãos. Imiscuía-me para junto do mestre que discursava e ninguém me censurava a impertinência, não me pediam satisfações pela intromissão. Mais tarde eu soube que, se tal acontecia, era devido a mera questão de afinidades. Somente o fato de havermos todos gravitado para aquele plano valeria pela credencial, que outra não era senão aquela mesma. Quem estivesse ali, estava porque poderia e deveria estar. Mais nada. Eu estava ali. Devia estar. No Além não existem dubiedades nem meias medidas. O que é, é! E era por isso que ninguém me enxotava de junto do mestre que discursava. Eu tinha direitos a estar junto daquele mestre. E estava.

     Olhei-o, àquele a quem haviam chamado Zaqueu. Semblante sereno, bondoso, enternecido, ainda jovem. Olhos cintilantes e perscrutadores, como alimentados por uma resolução invencível. Lábios finos, queixo estirado, com pequena barba negra em ponta, recordando o característico fisionômico dos varões judaicos. Tez alva, sobrancelhas espessas, mãos pequenas, pequena estatura, coifa discreta, listrada em azul forte e branco, manto azul forte, barrado de galões amarelos e borlas na ponta - eis a materialização do homem que teria sido, há dois mil anos, aquele Espírito que assim mesmo se apresentava aos seus ouvintes do mundo espiritual, disposto a cativá-los através da "regressão da memória" a essa personalidade remota que tivera sobre a Terra.

     Confesso que durante meus antigos estudos sobre o Evangelho nutrira grande simpatia por essa personagem que vemos, nas páginas santas, admiradora incondicional de Jesus, dotada de inclinações generosas a serviço do próximo, desejando repartir entre a pobreza parte da própria fortuna, desinteresse raro em qualquer tempo, sobre a Terra. Eu a entrevia, então, através dos versículos de S. Lucas, um caráter profundamente terno, simples, um idealista disposto ao auxílio aos semelhantes, não obstante tratar-se de pessoa que, embora poderosa e influente na localidade em que vivia, como chefe dos cobradores de impostos que era, se via, por isso mesmo, repelida e moralmente estigmatizada por aquela sociedade preconceituosa. E foi com o coração excitado por todos os raciocínios consequentes de tais lembranças que a ouvi atender à solicitação dos discípulos:

     - "A bondade do Mestre Galileu, honrando-me com uma visita e uma refeição em minha casa, eu, um renegado pela sociedade porque um "publicano" tocou-me para sempre o coração, meus amados, conforme sabeis... - ia ele dizendo. - Ele compreendeu as minhas necessidades morais de estímulo para o Bem, o meu aflitivo desejo de ser bom. Penetrou, com sua solicitude inesquecível, os mais remotos escaninhos do meu ser moral; contornou, com seu amor de Arcanjo, todas as aspirações do meu Espírito, filho de Deus, que sofria por algo sublime que lhe aclarasse as ações... E conquistou-me, assim, por toda a consumação dos séculos...

     Muito sofri e chorei quando esse Mestre foi levantado no suplício da Cruz. Não, eu não o abandonei jamais, desde aquele dia em que passou por Jericó! Segui-o. E o pouco que ainda viveu depois disso teve-me em suas pegadas para ouvi-lo e admirá-lo. Eu não me ocultei das autoridades, receando censuras ou prisão, nem tive preconceitos, e tampouco me importunou a vigilância dos tiranos de Roma ou o despeito dos asseclas do Templo de Jerusalém. Achava-me bem visível entre o povo, transitando pelas ruas, embora ignorado, humilhado pela minha condição de funcionário romano... e assisti aos estertores da agonia sublime, naquela tarde do 14 de Nisan... Soube, é certo, da ressurreição que a todos revigorou de esperanças... Mas não logrei tornar a ver e ouvir o Mestre, não fui bastante merecedor dessa ventura imensa... Ele só se apresentou, depois da ressurreição, aos discípulos - homens e mulheres - e aos apóstolos...

     Inconsolável por sua ausência e sentindo em mim um vazio aterrador, meu recurso para não desesperar ante a saudade e o pesar pelo desaparecimento desse Amigo incomparável foi insinuar-me entre seus discípulos, a fim de ouvir falarem dele...

     Fui a Betânia, quantas vezes?!... e tentei tornar-me assíduo da granja de Lázaro, de tão gratas recordações... Mas tudo ali estava tão mudado e tão triste, depois do 14 de Nisan...

     No entanto, ali, na granja de Lázaro, sob o frescor das figueiras viçosas que Marta plantara; à luz do luar, junto das oliveiras que farfalhavam docemente, ao impulso das virações que desciam do Hermon; no próprio pátio onde recendiam os lírios que Maria plantara, perdido entre o anonimato dos forasteiros que acorriam a Betânia quando ali o sabiam hospedado, eu ouvira pregações do Mestre pouco antes da Sua morte, saciando-me até à alegria e ao deslumbramento com as palavras daquela Doutrina que Ele concedia ao povo, o qual ignorava que a dois passos se ergueria a cruz, arrebatando-o da nossa vista...

     Visitei Pedro, esperando consolar a minha grande dor ouvindo-o dissertar sobre Aquele que se fora do alto do Calvário, com a eloquência com que sempre soube arrebatar as multidões.

     Perlustrei, choroso e desarvorado, as praias de Cafarnaum e de Genesaré, sem saber o que tentar em meu próprio socorro, mas esperançado de que os irmãos Boanerges, filhos de Zebedeu, me compreendessem e adotassem para discípulo do seu bando, como eu via que acontecia a tantos outros... (Espírito de Léon Tolstoi - Ressurreição e Vida! - Médium: Yvonne A. Pereira) - Este artigo segue em TOLSTOI ENCONTRA ZAQUEU II

(Nota do compilador: 1 = Yasnaya Polyana: localidade onde nasceu Lev Tolstoi ou Léon Tolstoi).

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